O conflito foi um teste para os Estados Unidos melhorarem sua atuação na região, por meio de uma política coerente para ambos os lados, o que ajudaria a conter o protagonismo geopolítico do Irã na região
Não há dúvida que o massacre promovido em 7 de outubro de 2023 contra os colonos israelenses pelo Hamas se configurou em mais uma das grandes atrocidades geradas pela chamada “Questão Palestina”. Atrocidades que somos obrigados a reconhecer a partir do momento que analisamos de maneira justa: ela ocorre de ambos os lados. Ao contrário do que a grande mídia e os grupos corporativistas pró-Israel assinalam, nunca existiu ou existirá uma “guerra” contra os palestinos. O motivo? Não há equiparação militar entre os dois lados. Se compararmos os números de mortos temos a certeza disso.
O fato é que o conflito iniciou mais uma etapa do conhecido declínio geopolítico dos EUA. O Irã se consolida no momento como um importante player regional definitivo e revigorado pela sua atuação por meio de grupos como Hamas (Faixa de Gaza), Hezbollah (Líbano) e Houthis (Iêmen), e pelo aumento de sua capacidade militar. Os grupos são apoiados por Teerã e com relativa capacidade operacional. Logicamente, o Hamas está enfraquecido, mas certamente se recuperará ao final do conflito com a ajuda do Irã.
Todo protagonismo que o Irã vem assumindo, principalmente após os ataques à fronteira paquistanesa, em janeiro, com utilização de mísseis de alta precisão, tem um “patrocinador”: Washington. Parece uma contradição, mas não é. Os EUA, ao se omitirem frente à atuação desproporcional de Israel contra a população palestina na Faixa de Gaza – por meio de bombardeios indiscriminados contra civis, da criação de obstáculos para a chegada de suprimentos médicos, da falta de energia, comida e água – além de se colocar ao lado de Israel no Conselho de Segurança da ONU e dificultar uma resolução para um cessar-fogo, deu início a uma onda de solidariedade internacional aos palestinos, principalmente no Oriente Médio.
Com o decorrer do tempo o massacre ficou mais claro tanto para a ONU como para as organizações de Direitos Humanos. Agora, europeus e norte-americanos passaram a criticar timidamente o “direito de defesa” israelense. Contudo, Washington não exerce o seu real poder para obter um cessar-fogo que permita parar o massacre na Faixa de Gaza. Sem os EUA como seu fiador, Israel teria problemas sérios para enfrentar os seus adversários na região.
Quando o governo Barack Obama tentou obter um acordo para manter o programa nuclear de Teerã sob controle internacional, estava correto na proposta. Donald Trump, no entanto, declinou o acordo, e seus efeitos estão sendo observados atualmente. Vale lembrar que um programa nuclear é um direito soberano de qualquer nação. Logicamente, o uso nuclear para fins pacíficos é o ponto central para qualquer discussão e o seu uso para “fins militares” deve gerar preocupação sempre. Porém, não devemos esquecer que todos os membros do Conselho de Segurança da ONU possuem o artefato nuclear. Inclusive, um membro já usou duas bombas atômicas contra populações civis.
O que devemos ter em mente é que os EUA “criaram” – ou pelo menos aceleraram – o programa nuclear de Teerã (e da Coreia do Norte) no governo George W. Bush. A chamada Doutrina Bush, que criou os chamados Rogue States, indicando nominalmente os “inimigos” de Washington em meio aos traumas do 11 de setembro, apontou possíveis alvos de “ataques preventivos”. Entre outros, o Irã e a Coreia do Norte. Os dois países continuaram a ser tratados como ameaças tanto por Washington como pelos seus satélites da Europa e Ásia. Hoje, os dois são os que conseguiram aumentar a sua capacidade bélica e caminham para entrar no “Clube Nuclear”, a despeito das milhares de sanções econômicas que pesam sobre suas economias – comprovando, mais uma vez, que a utilização de sanções econômicas é totalmente ineficaz para promover regime change.
O governo de Joe Biden está criando as condições para a consolidação de um maior protagonismo do Irã no Oriente Médio ao utilizar o massacre palestino como principal retórica para aglutinar apoio na região, a despeito do contrapeso geopolítico da Arábia Saudita e da Turquia.
Ao mesmo tempo, Teerã teria aumentado sua capacidade de enriquecer urânio segundo relatório da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), divulgado no final de 2023. Segundo a AIEA, o Irã dispunha 4.486,8 kg de urânio em 28 de outubro, 22 vezes mais do que os 202,8 kg estabelecidos no acordo nuclear de 2015. Na atualidade, o Irã possui aproximadamente 128 kg de urânio enriquecido a 60%. Segundo os padrões utilizados por russos e norte-americanos, é necessário chegar a 90%. No primeiro trimestre de 2023, a AIEA teria encontrado “partículas” de urânio enriquecidas com quase 84% de pureza. A bomba atômica iraniana é uma questão de tempo.
O conflito na Faixa de Gaza foi um teste para os EUA (governo Biden) melhorar a sua atuação na região, por meio de uma política coerente para ambos os lados com a criação das condições de um Estado palestino. Isso ajudaria a conter o protagonismo geopolítico do Irã na região. Entretanto, a visão obtusa de Washington e Tel Aviv não permite observar isso.
Charles Pennaforte é Doutor em Relações Internacionais, professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e Presidente do Centro de Estudos em Geopolítica e Relações Internacionais (CENEGRI).
https://diplomatique.org.br/eua-massacre-palestino-protagonismo-ira/